ArtigosPor onde anda a memória de nossas memórias?

Por onde anda a memória de nossas memórias?

Está comprovado que existe um local físico onde processamos em a linguagem, a  visão ou o movimento.

Contudo, diferentemente da maioria de nossas sensações cuja percepção, de modo geral, costuma ocorrer a partir do estímulo de uma área específica do cérebro, a memória é um padrão de atividade neural que normalmente envolve múltiplos circuitos, numa complexa interação de associações díspares em nossa atividade cerebral.

Isto porque o registro de nossas lembranças não se assemelha, nem de longe, às gravações de uma câmera de vídeo que, de forma mecânica, capta fluxos de sons e imagens lineares e constantes.

Certo é que, no mundo real, o armazenamento e a fidelidade das nossas recordações guardam relação direta com as emoções a elas vinculadas.

E o grau de importância que atribuímos a tais recordações obedece a uma dinâmica própria e subjetiva, de acordo com o momento e as circunstâncias vividas, o que faz com que as arquivemos numa escala de acesso mais ou menos remoto, conforme a necessidade.

© creativecommonsstockphotos

No nível fisiológico, podemos considerer o hipocampo (importante componente do sistema límbico que é, por sua vez, responsável pelas emoções e comportamentos) como o “universo contextual” em que se desenrolam os eventos associados a nossa memória.

Aí se conectam os sons, as imagens, os cheiros…

Segundo a neurocientista norte-americana Lisa Gênova, em seu sugestivo livro Memória – A Ciência da Lembrança e a Arte do Esquecimento, “Nossos cérebros humanos são fenomenais  em lembrar o que é significativo,  emocional, surpreendente ou novo  e o que é repetido. Eles são muito ruins em lembrar o que é o mesmo, o igual… o que não é  emocional, não é repetido. Nossos cérebros também são ótimos  para lembrar coisas  que são visuais e onde  essas coisas estão no espaço. Evolutivamente, foi muito  importante para a nossa sobrevivência  lembrarmos onde  está a comida, onde está a segurança,  onde vivem os predadores”.

Quanto ao “universo contextual” a que me referi acima e as formas como se definem seus multifacetados limites, a Dra. Lisa exemplifica da seguinte forma: “…se estou pensando na visão  e no som do Mickey Mouse,  terei neurônios na parte de trás da minha cabeça,  esse é meu córtex occipital,  meu córtex visual será ativado. Esses representam a  aparência do Mickey Mouse. Mas o som do Mickey Mouse  está localizado em outro lugar. Isso está no meu  córtex auditivo, perto dos meus ouvidos. E assim o circuito, a memória envolverá a ativação  de neurônios nesses lugares muito diferentes”.

Porém, a despeito de onde armazenamos nossas lembranças, importa saber se elas duram, o quanto duram e o quanto íntegras se mantêm.

Aí depende muito de muita coisa.

Algumas memórias são construídas para durar apenas alguns segundos; outras para durar uma vida inteira.

© iStock / Getty Images

A ciência classifica a memória em pelo menos três categorias: a primeira e mais precisa delas é conhecida como memória semântica. Esta compõe-se pelo tipo de lembrança das coisas que a gente aprendeu na escola, como  dados históricos e contas de tabuada. Nesta categoria incluem-se também nossas informações biográficas (onde e quando nascemos, quem são nossos pais e avós; nosso endereço, número de telefone etc.). A memória semântica é também a que tem mais estabilidade. Num indivíduo saudável,  ela raramente falha.

A segunda categoria,  igualmente estável e de longo prazo, é chamada de memória muscular. Ela se localiza principalmente no córtex motor e essencialmente depende dos nossos músculos. É o caso, por exemplo, de escovarmos os dentes, ou andarmos de bicicleta. A gente nunca se esquece destas coisas. É uma espécie de memória coreográfica, baseada na sequência de movimentos. Trata-se de lembrar dos procedimentos e da ordem em que são executados. É uma lógica que normalmente resiste ao tempo. Mesmo se ficarmos por muitas décadas sem fazer essas coisas, a lembrança não se apaga.

Por fim, a terceira categoria, rotulada como memória episódica, já não é tão confiável. Refere-se às coisas que nos aconteceram, sem maiores emoções envolvidas, e das quais realmente quase nada retemos além do essencial. O mais interessante (e o que mais acontece) neste tipo de lembrança é a nossa capacidade — consciente ou não  — de modificar o registro cada vez que o acessamos. Isto é, toda vez que nos lembramos, podemos acrescentar ou suprimir algum detalhe e assumirmos como verdadeira esta nova versão. Vai daí ela não ser tão confiável…

Por razões diversas que só cada um de nós intimamente explica (ou não), acabamos por “inventar” memórias, adornando inconscientemente as nossas lembranças, aperfeiçoando a nossa história,  de modo a propiciar que ela faça mais sentido para nós.

Isto ocorre de forma similar ao processo de edição de um arquivo do Word no qual, quando se salvam as alterações, a nova versão automaticamente substitui a antiga.

Assim, é incrivelmente possível que, toda vez que temos  acesso a uma memória episódica, possamos nos afastar cada vez mais do que aconteceu de fato.

Verdade? Mentira? Ilusão? Manipulação? Sei lá!

O fato é que nossa mente abriga mistérios ainda insondáveis e quanto mais a estudamos percebemos haver muito mais a estudar.

Resta ainda descobrir o papel dessas recordações “recicladas” e seu impacto sobre as narrativas que criamos.

Será que precisamos sempre retroalimentar nosso sistema de crenças, recriando as verdades em que nos baseamos para explicar as diversas versões da nossa realidade?

Eis outra vez a ciência na incessante busca da fabulosa e infinita consciência de que somos dotados.

Autor

Cyro Portocarrero
Cyro Portocarrero
CEO da TV PSI Bacharel em Direito e Doutor em Ciência Política, com especialização em Análise de Processo Legislativo, desempenhou diversas funções de Estado na Administração Pública brasileira e aposentou-se como servidor efetivo de carreira do Senado Federal, com mais de 30 anos de trabalho, muitos dos quais dedicados ao Parlamento Latino-Americano. Integra o quadro de Imortais, “de notória competência e saber” da ANE – Academia Brasileira de Ciências Econômicas, Políticas e Sociais.

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