Segundo o budismo, toda a Criação retornará ao Criador, num processo de livre arbítrio proporcionando aos seres humanos em múltiplas reencarnações, até que, espontaneamente, escolhamos regressar à Fonte inicial. Pensava eu haver assimilado estes princípios por volta de meus 50 anos. Hoje, quase aos 80, descobri estar errado. Faltava-me compreender que o retorno-fusão à Eterna Sabedoria, Deus, somente será realizado quando eu aceitar totalmente minha dependência d’Ele, para remover defeitos de caráter e imperfeições.
Recentemente passei por um baque emocional intenso, que me fez contemplar várias coisas, inclusive lances de autossabotagem. Interiormente paralisado, inspiração bloqueada, e incapaz de escrever senão algumas páginas de meu diário, desapontei meus editores e alguns entes queridos. Agradeço-lhes a paciência. Capaz de resolver problemas alheios, veterano na assistência social, deparei-me com pensamentos destrutivos, outrora sepultados em camadas de terapia e participação em grupos de ajuda mútua.
Cérebro esfumado, olvidei temporariamente as regras 2 e 4, aprendidas em programas de 12 passos: “Viemos a acreditar que um Poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade [e] Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos.” Em minha soberba, também me descuidei da regra nº 5, “Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas”. Dois amigos, agora filhos queridos, levantaram-me o ânimo, quando mais baixo me sentia. Meu filho, ajudando nas atividades diárias. Minha filha, em Portugal , passando-me mensagens lindas e lembrando-me que às vezes nós, humanos, criações do Divino, nos confundimos com o Criador. Enquanto os papéis restem invertidos, a confusão reinará na criatura. E, para uma velhice feliz, aprendi a admitir três coisas a amigos e a estranhos: 1) não sei; 2) tenho medo; 3) preciso de ajuda. Uma noite, sobressaltado, acordei às 2 horas da manhã, nomenclatura exata de meu problema impressa no cérebro em letras de forma: AUTOSSABOTAGEM, engenhando a perda de confiança pessoal e o terror de não merecer o privilégio de escrever bons artigos, livros e trechos online, nem de gravar poemas de apoio, alentando noites de amigos durante a pandemia.
Lembrei-me de um provérbio, o favorito de minha mãe: “se a carapuça serve, use.” Eu estava usando a carapuça da autossabotagem. Por coincidência, meu boné favorito desapareceu num shopping center. Tomei-lhe a falta como um sinal de jogar a carapuça fora, correr no batente da vida e da escrita. Tenho em meu quarto uma mesa de cabeceira transformada em altar, acima do qual, na parede, há uma pintura antiga da crucificação de Cristo e os dois ladrões. Contemplando-a, revivi um episódio dos meus oito anos; uma das etapas iniciais da autossabotagem.
Estávamos na praia de Copacabana: meu pai, machista e homofóbico, seu irmão Ludgero e eu. Manhã ensolarada, no fim de semana. O mar bravo batia ondas fortes na areia. Meu pai decidiu que eu deveria aprender a nadar, ali mesmo, obrigando-me aos berros a entrar no mar, embora as ondas me catapultassem várias vezes na areia. Assim ia eu batendo de cabeça, ralando braços e pernas, engolindo toneladas d’agua vomitada. Meu pai gritava: “Seja homem, porra! Levanta! Entra de novo! Vai nadar! Te vira, porra! Homem não chora. Quem chora é ‘viado’…” Temendo a violência, após algumas tentativas desengonçadas, sobrevivi à provação. Meu pai parou os insultos. Não lhe dei o prazer do choro, nem naquele dia, nem nunca. Satisfiz-lhe o machismo. Ocultei-lhe o medo e minha escolha sexual futura. Criança, precisava de sua aprovação e a da sociedade em geral. Anos a fio, batalhei sentimentos de mediocridade imposta pelo incidente. Não brilhei nos estudos como adolescente, ou jovem universitário em Faculdade de Jornalismo. Mas tive a grande sorte de encontrar amigos e mentores, no Brasil e no exterior. Adulto, pus um continente entre mim, meu pai e os preconceitos homofóbicos que levaram ao suicídio companheiros amados. Deixei de pagar mensalidades ao clube de aceitação filial, adquirindo finalmente autoestima. Aos 43 anos aprendi a nadar na Associação Cristã de Moços, em San Francisco, com professores de natação especializados no ensino de indivíduos com histórico de traumas aquáticos.
Por meio da psicoterapia e dos Emocionais Anônimos (um programa baseado nos de 12 passos dos Alcoólicos Anônimos), aprendi a ver a recuperação − seja do alcoolismo ou das emoções −, como a jornada do motorista de primeira viagem, perdido na estrada, suplicando a Deus um grande círculo de retorno ao ponto de partida. Com o tempo ele conhecerá melhor a estrada, necessitando infrequentes e menores círculos de retorno. E o mesmo Deus Criador, Grande Poder Universal que permitiu ao motorista aprender a conduzir, fornecendo-lhe o carro e o caminho, seguramente o acolherá no fim da viajem.